17 Outubro 2023
Reproduzimos a seguir a carta de Daniel Barenboim, fundador da West Eastern Divan Orchestra e ex diretor musical da Ópera Estatal de Berlim e do teatro La Scala, publicada por La Repubblica, 15-10-2023.
Caro Editor, os atuais acontecimentos em Israel e Gaza chocaram profundamente a todos nós. Não há justificação para os bárbaros atos terroristas do Hamas contra civis, incluindo crianças e recém-nascidos. Devemos tomar nota disso, reconhecê-lo e parar. Mas o passo seguinte é obviamente a pergunta: e agora? Vamos nos render a essa terrível violência e deixar que a nossa busca pela paz "morra" ou vamos continuar a insistir que deve e pode haver paz?
Estou convencido de que devemos continuar, e fazer isso tendo em mente o contexto mais amplo do conflito. Nossos músicos do West-Eastern Divan, nossos alunos da Academia Barenboim-Said, quase todos estão diretamente envolvidos. Muitos dos músicos vivem na região, assim como outros têm muitos laços com a sua pátria. Isso reforça a minha convicção de que só pode haver uma solução para o conflito: com base no humanismo, na justiça e na igualdade e sem força armada e ocupação. A nossa mensagem de paz deve ressoar mais forte do que nunca. O maior perigo é que todas as pessoas que anseiam pela paz sejam aniquiladas por extremistas e pela violência. Mas qualquer análise, qualquer equação moral que possamos elaborar, deve ter como base esta compreensão fundamental: existem seres humanos de ambos os lados. A humanidade é universal e o reconhecimento dessa verdade, por ambos os lados, é o único caminho. O sofrimento de pessoas inocentes de ambos os lados é absolutamente insuportável.
As imagens dos ataques terroristas devastadores do Hamas partem-nos o coração. E a nossa reação demonstra claramente uma coisa: que a vontade de provar empatia pela situação dos outros é essencial. É claro que, e especialmente nesse momento, devemos também permitir-nos sentir medo, desespero e raiva, mas quando isso nos leva a negar ao outro a sua humanidade, estamos perdidos. Cada pessoa pode fazer a diferença e transmitir algo. É assim que se mudam as coisas em pequena escala. Em grande escala, depende da política.
Devemos oferecer outras perspectivas àqueles que são atraídos pelo extremismo. Afinal, a maior parte das pessoas que se dedicam a ideologias assassinas ou extremistas é completamente desprovida de perspectivas e desesperada. A educação e a informação são igualmente essenciais, porque existem muitas posições baseadas numa absoluta desinformação.
Para reiterar com clareza: o conflito entre Israel e a Palestina não é um conflito político entre dois estados por fronteiras, água, petróleo ou outros recursos. É um conflito profundamente humano entre dois povos que conheceram sofrimento e perseguição. A perseguição do povo judeu durante 20 séculos culminou na ideologia nazista que matou seis milhões de judeus. O povo judeu cultivava um sonho: uma terra própria, uma pátria para todos os judeus na atual Palestina. Mas esse sonho implicava um pressuposto profundamente problemático, por ser fundamentalmente falso: uma terra sem povo para um povo sem terra. Na realidade, a população judaica na Palestina durante a Primeira Guerra Mundial era de apenas 9%. Um total de 91% da população não era, portanto, judia, mas palestina, que cresceu ao longo dos séculos. O país certamente não podia ser definido como uma “terra sem povo” e a população palestina não via razão alguma para renunciar à sua terra. O conflito era, portanto, inevitável e, desde o seu início, as frentes só se endureceram ainda mais no curso de gerações. Estou convencido: os israelenses terão segurança quando os palestinos puderem sentir esperança, isto é, justiça. Ambos os lados devem reconhecer os seus inimigos como seres humanos, e tentar ter empatia com o seu ponto de vista, a sua dor e o seu sofrimento.
Os israelenses também devem aceitar que a ocupação da Palestina é incompatível com isso.
Para a minha compreensão deste conflito, que já dura mais de 70 anos, a amizade com Edward Said é uma experiência fundamental. Encontramos um no outro uma contraparte capaz de nos levar mais longe, de nos ajudar a ver com mais clareza os pressupostos alheios e a compreendê-los melhor. Nós nos reconhecemos e nos encontramos em nossa humanidade comum. Para mim, o trabalho conjunto com o West-Eastern Divan, que encontra a sua lógica continuação e talvez até o seu ápice na Academia Barenboim-Said, é provavelmente a atividade mais importante da minha vida.
Na situação atual, perguntamo-nos naturalmente qual é o significado do nosso trabalho conjunto na orquestra e na academia. Pode parecer pouco, mas o simples fato de músicos árabes e israelenses partilharem o pódio em cada concerto, e toquem música juntos, tem um valor imenso para nós. (...) Devemos, queremos e continuaremos a acreditar que a música pode nos aproximar mais uns dos outros, juntos na nossa humanidade.
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Reconhecer o homem mesmo no inimigo. Carta de Daniel Barenboim - Instituto Humanitas Unisinos - IHU